Como a Pressão Estética Afeta a Saúde Mental das Mulheres: o Mito da Mulher Bem Cuidada
- Instituto Emancipar

- 21 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 9 de jun.
O que significa ser uma mulher bem cuidada?
Beber água suficiente, manter a higiene básica, tomar sol alguns minutos ao dia, movimentar o corpo sempre que possível, alimentar-se de forma minimamente equilibrada. Esses são atos simples, cotidianos e, muitas vezes, invisibilizados como formas legítimas de cuidado. Quando se pensa na expressão "mulher vaidosa" ou "mulher bem cuidada", dificilmente essas práticas vêm à mente. Em seu lugar, prevalece uma imagem idealizada: maquiagem impecável, pele sem manchas, corpo magro, roupas ajustadas e uma presença constante nas redes sociais que performa bem-estar com um copo de chá na mão.
1. A cultura do bem-estar como indústria de consumo
Essa construção não é casual. É resultado de um processo histórico, político e econômico que transformou o bem-estar em mercadoria. A chamada “cultura do bem-estar”, como aponta a escritora Amy Larocca em entrevista à Folha de S.Paulo (2025), é hoje uma das indústrias mais lucrativas do mundo. Sua estética sofisticada e seu discurso de autocuidado escondem um funcionamento perverso: apenas consome quem pode pagar. Cuidar de si torna-se um privilégio, não um direito.
2. O ideal de beleza e seus impactos econômicos e sociais
Dados da ABIHPEC mostram que o Brasil ocupa a segunda posição entre os países que mais lançam produtos de beleza e está entre os cinco maiores mercados consumidores do mundo. Em 2021, o setor movimentou R$124,5 bilhões, com previsão de ultrapassar os R$130 bilhões até 2026 (SEBRAE, 2024). O país também registrou mais de 2,1 milhões de procedimentos de cirurgia plástica em 2023, confirmando sua posição entre os líderes mundiais em intervenções estéticas (VALOR ECONÔMICO, 2024). Ainda que o número aumente, o perfil da demanda vem se modificando: cresce a preferência por procedimentos menos invasivos e com aparência mais natural, o que indica uma sofisticação nas exigências do ideal estético, e não exatamente uma ruptura com ele.
3. O mito da beleza como controle sobre o corpo feminino
A escritora Naomi Wolf, em O Mito da Beleza, denuncia esse fenômeno como um mecanismo sofisticado de dominação. Mesmo após os avanços promovidos pelos movimentos feministas, o corpo feminino segue sendo vigiado, moldado e avaliado, agora sob o disfarce do empoderamento. Em suas palavras:
“A obsessão com a beleza física é um instrumento eficaz de controle social. As mulheres que são mantidas ocupadas tentando atingir padrões inatingíveis não têm tempo, energia ou recursos para desafiar o sistema” (WOLF, 1992, p. 21).
Essa armadilha é ainda mais eficiente porque se apresenta como escolha. Práticas de autocuidado como meditação, skincare, alimentação funcional e atividade física, são vendidas como libertadoras, quando, na realidade, operam sob forte normatização estética e classe social. Amy Larocca chama atenção para o “narcisismo das pequenas diferenças”, onde o bem-estar passa a ser medido por detalhes mínimos: o tipo de colágeno consumido, o selo orgânico do chá, a frequência das aulas de pilates. Essa disputa simbólica mascara desigualdades estruturais e reforça um ideal de vida quase sempre inatingível para a maioria das mulheres.
4. Como a pressão estética afeta a saúde mental das mulheres
O impacto da pressão estética vai muito além da vaidade. Estudos indicam que a exposição constante a padrões de beleza irreais, especialmente nas redes sociais, contribui diretamente para o aumento da insatisfação corporal, baixa autoestima, ansiedade e outros transtornos psicológicos. Segundo o estudo de Ribeiro et al. (2025), a exposição frequente a conteúdos de beleza nas redes sociais está associada a altos índices de ansiedade, insatisfação corporal e sentimentos de inadequação entre mulheres jovens. Esses efeitos são potencializados em contextos de comparação social, onde o corpo passa a ser a principal referência de valor pessoal.
Em O Mito da Beleza, Wolf dedica um capítulo à “fome”, não apenas como restrição alimentar literal, mas como forma simbólica de silenciamento feminino. Mulheres que gastam sua energia tentando se moldar ao ideal de beleza tornam-se, segundo ela, mais submissas, inseguras e dependentes da validação externa. Essa obsessão estética contribui para a banalização de transtornos como depressão, distúrbios alimentares e dismorfia corporal, naturalizando o sofrimento como parte da experiência de ser mulher. A fome pelo olhar externo apaga desejos próprios, voz, liberdade. O sofrimento é naturalizado como parte da experiência feminina.
Para aprofundar essa discussão, leia também nosso artigo: A Patologização do Sofrimento Humano: Uma Análise Crítica.
5. Quando o corpo não corresponde: exclusão e desumanização
O discurso da mulher “bem cuidada” também cria um novo tipo de culpa: a culpa por não conseguir atingir o ideal. E essa culpa não está dissociada de raça, classe, deficiência e território. A mulher negra, periférica, com deficiência ou sobrepeso é sistematicamente excluída da narrativa dominante sobre beleza e bem-estar. Não é uma questão de escolha individual, mas de estrutura social.
6. Corpos fora do padrão: entre a marginalização e a resistência
Entre as violências que essa lógica impõe, está também a marginalização das mulheres que não se moldam aos padrões socialmente aceitos de feminilidade. Mulheres com cabelo curto, roupas largas, ausência de maquiagem ou uso de trajes considerados neutros ou funcionais são frequentemente lidas como desleixadas, masculinizadas ou frias. Essa leitura moralizante não se limita à opinião: ela alimenta práticas de exclusão, vigilância e até de punição social. O cuidado, nesses casos, deixa de ser um direito e passa a ser um marcador de normalidade.
7. Wittig e Truth: quem é considerada uma “mulher de verdade”?
A filósofa francesa Monique Wittig, em seu ensaio “As lésbicas não são mulheres”, argumenta que a categoria “mulher” foi construída sob o regime da heterossexualidade compulsória, ou seja, só existe enquanto oposição ao homem e à sua centralidade. Corpos que recusam essa lógica, mesmo sem nomeá-la, são imediatamente lançados fora da norma, pois rompem com o sistema simbólico que sustenta o que é inteligível como “mulher”. Ao desobedecer às formas reconhecíveis da feminilidade, esses corpos se tornam ilegíveis, desviantes e até hostis à ordem patriarcal.
Essa crítica se entrelaça com a denúncia histórica de Sojourner Truth, que em 1851 questionou: “E eu não sou uma mulher?”. Seu discurso escancarava a exclusão sistemática das mulheres negras do ideal de feminilidade construído no Ocidente. Ela não era lida como mulher porque seu corpo não se enquadrava nos marcadores da branquitude, da fragilidade e da beleza eurocentrada. A questão de Truth permanece atual: ainda hoje, muitas mulheres não são reconhecidas como tal por não se dobrarem à docilidade estética exigida.
8. Conclusão: repensar o cuidado como ato político
Essas duas perspectivas, uma que denuncia a construção heteronormativa da categoria mulher, e outra que revela sua racialização, nos ajudam a entender como o ideal de vaidade e bem-estar é um campo de controle político. Elas mostram que o modelo de “mulher bem cuidada” não é apenas uma narrativa de consumo, mas um dispositivo de normatização que determina quem pode ou não ser considerada uma mulher “de verdade”.
Por isso, é necessário questionar: de quem é o corpo que pode se apresentar como “bem cuidado”? Quem tem tempo, recursos, tranquilidade e acesso para cumprir esse roteiro do autocuidado? E mais importante: será que as mulheres estão realmente cuidando de si ou apenas reproduzindo um modelo estético-político de controle disfarçado de liberdade?
Resgatar a vaidade como prática cotidiana e acessível, como o simples gesto de se alimentar, se higienizar, descansar, se proteger, é também um ato político. Desvincular o cuidado da performance é uma forma de resistência frente à cultura do consumo que, enquanto promete libertação, aprisiona em novas exigências. O cuidado real é silencioso, desorganizado, muitas vezes invisível. E, exatamente por isso, é profundamente revolucionário.
Esse texto ressoou com você? Conte nos comentários como você se relaciona com a ideia de vaidade e cuidado.
Para saber mais
Referências
KANTAR. Tendências de Mercado Higiene e Beleza Brasil 2023. São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.kantar.com/brazil/Inspiration/Consumo/2023-WP-tendencias-de-mercado-higiene-e-beleza-BRA. Acesso em: 19 maio 2025.
LAROCCA, Amy. O que é ser uma mulher bem cuidada: escritora aponta contradições da cultura do bem-estar. Folha de S.Paulo, São Paulo, 15 maio 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/05/o-que-e-ser-uma-mulher-bem-cuidada-escritora-aponta-contradicoes-da-cultura-do-bem-estar.shtml. Acesso em: 19 maio 2025.
MARIE CLAIRE. Pesquisa revela novos hábitos de consumo de beleza das mulheres. Marie Claire, Rio de Janeiro, 20 jan. 2022. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Beleza/noticia/2022/01/pesquisa-revela-novos-habitos-de-consumo-de-beleza-das-mulheres.html. Acesso em: 19 maio 2025.
RIBEIRO, M. A.; CANHETTI, P. V.; SANTOS, B. H. dos; BARROS, C. C.; GOMES, M. P.; RIBEIRO, C. F. G.; SILVA, A. P. R. O impacto das redes sociais na saúde mental feminina por pressão estética. Revista Foco, v. 18, n. 4, e8217, 2025. DOI: https://doi.org/10.54751/revistafoco.v18n4-050. Acesso em: 19 maio 2025.
SEBRAE. Tendências para o Setor de Beleza em 2024. Brasília, 2024. Disponível em: https://digital.sebraers.com.br/blog/estrategia/tendencias-para-o-setor-de-beleza-em-2024/. Acesso em: 19 maio 2025.
VALOR ECONÔMICO. País deve passar de 2 milhões de cirurgias plásticas em 2023. Valor Investe – Dino, São Paulo, 15 jan. 2024. Disponível em: https://valor.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2024/01/15/pais-deve-passar-de-2-milhoes-de-cirurgias-plasticas-em-2023.ghtml. Acesso em: 19 maio 2025.
WITTIG, Monique. O pensamento heterossexual e outros ensaios. São Paulo: n-1 edições, 2021.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.




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