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O capitalismo (como conhecíamos) morreu!

  • Foto do escritor: Instituto Emancipar
    Instituto Emancipar
  • 30 de jul.
  • 9 min de leitura

Parece uma boa notícia, menos quando leva junto a nossa saúde mental. O diagnóstico de Varoufakis

Hoje pela manhã, enquanto lia as manchetes do jornal, me deparei com uma matéria na Folha de S. Paulo em que o economista grego Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, afirma que os governos financiaram, “sem perceber”, a morte do capitalismo. No primeiro momento, a frase me pareceu exagerada, e até mesmo mentirosa. Porém, ao avançar na leitura da matéria, consegui nomear um incômodo que sentia, mas não sabia que existia uma teoria para explicar. Não sou economista, mas como psicóloga, recebo na clínica resultado desses incômodos, sentidos na pele por quem vive, ainda que também não saiba traduzir o que sente, mas vivencia no dia a dia a consequência dessa suposta morte do capitalismo. E também infelizmente, a clínica não dá conta de resolver, talvez apenas aliviar.

O feudo digital e a nuvem como novo território de dominação

Voltando à matéria, fui procurar mais informações, e entendi que o que Varoufakis estava dizendo é que deixamos de viver num capitalismo clássico,  aquele em que o risco, o mérito e a produção guiavam (ao menos em tese) os rumos do jogo econômico, para cair num sistema de aparência capitalista, mas que funciona na lógica de um novo feudalismo. Só que agora, o feudo não é mais a terra, mas a nuvem: os grandes senhores são as plataformas, as big techs, os monopólios digitais que controlam os caminhos por onde transitam trabalho, renda, visibilidade e até a existência social. Quem não está ali dentro, pode desaparecer. Quem depende dessas estruturas, precisa se submeter, sem direito à negociação real, e vive sob a insegurança constante de até quando poderá permanecer ali e, nesse “ali” que já não é território, não tem chão nem geografia, mas tem o poder de excluir, ordenar e produzir um sentimento profundo de não lugar.


É como se estivéssemos tentando existir em um campo sem coordenadas, onde tudo é digital, mutável e impessoal, mas que define, com brutalidade, quem come, quem vende, quem aparece e quem adoece e, nesse campo sem chão, a vertigem não é um sintoma, mas uma consequência lógica.

Foi nesse ponto que a leitura bateu de verdade.




A nova ansiedade e o não lugar

Tenho pensado muito sobre o tipo de adoecimento mental que vem se tornando comum, quase estrutural, entre nós. E me chama atenção o modo como a ansiedade, que antes se associava à antecipação de um evento, ao medo do erro ou da rejeição, agora se apresenta como uma espécie de vertigem constante. Uma angústia difusa, sustentada por não saber o que virá, por não conseguir pertencer a lugar algum e por não ter onde firmar o pé. O futuro não apenas é incerto: ele parece sistematicamente negado.

É disso que Varoufakis está falando, e que muitos de nós estamos sentindo. A ideia de que há um grupo que sempre ganhará, independentemente do jogo, e outro que sempre perde, mesmo quando joga certo. Porque o campo já é um terreno viciado, com donos, que não somos nós. Porque as regras mudam o tempo todo, de fora para dentro, sem aviso, sem controle, e nunca em nosso favor.


O precariado, a lógica das plataformas e o custo psíquico

Há, inclusive, uma piada recorrente entre os millennials: os pais, com 30 anos, já tinham uma casa própria, um carro (muitas vezes velho) na garagem e um terreno no interior. Agora, os “bens” acumulados, são plantas, gatos e talvez uma estante comprada em 12 vezes. E isso, claro, com todos os recortes que precisam ser considerados, como o caso de um entregador negro, morador da periferia, que além do risco do trânsito, enfrenta o racismo policial cotidiano e a exclusão digital ao ter seu celular bloqueado, mas ainda assim com um ponto comum: a impossibilidade de consolidar um projeto de vida dentro das promessas clássicas do capitalismo (clássico). Nesses atravessamentos, o adoecimento não é apenas psíquico, mas material, histórico e coletivo. 


Agora não há casa própria, muito menos carreira linear. O que há são “bicos”, “freelas”, jornadas parciais, e a exigência permanente de sermos “multi”. Multi habilidades, multi telas, multi vínculos, mesmo que frágeis. Pessoas treinadas para acumular funções, com conhecimentos amplos, porém rasos, moldados sob medida para o que o mercado exige e explora: ocupar várias frentes ao mesmo tempo, aceitar trabalhos precários, ou servir de mão de obra barata, sustentando o trabalho sujo que as big techs impõem.


O conceito do precariado, que o sociólogo Guy Standing já vinha desenvolvendo, ganha aqui um novo contorno. Se antes ainda havia uma luta por direitos mínimos, agora, no modelo digital-plataformizado, há submissão silenciosa ao feudo invisível das nuvens. O motorista de aplicativo que trabalha 14 horas por dia e não tem controle sobre o próprio valor da corrida. O entregador que se arrisca em ruas violentas, com chuva ou sem, e depende de uma nota para manter seu “direito” a trabalhar. A loja pequena que vende pelo Instagram e tem seus acessos bloqueados sem aviso, por uma política genérica de “comunidade”.


Essa dinâmica de dominação algorítmica é muitas vezes disfarçada sob a aparência de escolha, quando na verdade opera como imposição estrutural. É nesse ponto que emerge a falsa ideia de liberdade individual, sustentada por uma pseudoautonomia.


PseudoAutonomia

Tomando como exemplo concreto, podemos pensar em uma padaria de bairro, que antes tinha sua vitrine na rua, recebia em dinheiro e conhecia seus clientes. Hoje, para sobreviver, muitas precisam vender por plataformas de entrega, aceitar intermediadores de pagamento, criar presença digital e se uma dessas ferramentas cai, bloqueia ou muda suas regras, a padaria perde tudo, sem aviso e sem defesa.O mesmo vale para atendimentos médicos ou psicológicos: por um lado, as plataformas ampliam o alcance, permitindo que uma pessoa do interior do país acesse profissionais de outros estados. Mas essa ponte é frágil: basta uma política de uso, uma falha técnica, uma exclusão automática, e tanto a profissional quanto a pessoa atendida perdem o vínculo, sem resposta, sem recurso e sem território. Não se trata, aqui, de condenar a tecnologia em si, mas de expor a lógica concentradora e opaca que a governa. A crítica não é ao digital, mas aos donos invisíveis que controlam os códigos, os acessos e os vínculos.

E tudo isso tem um custo psíquico profundo.


Vários estudos apontam os impactos do trabalho precário e da instabilidade digital sobre a saúde mental. Ansiedade crônica, sensação de inutilidade, medo constante de perda de renda, dificuldades cognitivas, insônia, depressão e aumento do risco de suicídio, só para citar alguns. Há também estudos específicos com motoristas e entregadores de aplicativos, que mostram como a exposição diária ao risco, ao cansaço físico e à desumanização impactam diretamente o senso de identidade, dignidade e pertencimento.


O que está se dizendo, no fundo, é que a saúde mental não está apenas dentro da cabeça das pessoas. Ela está nas estruturas que as cercam e,  quando essas estruturas se tornam fumaça (nuvem) e os vínculos se tornam algoritmos, é o corpo inteiro que adoece, é o tempo que se torna líquido, é o futuro que se dissolve.


Conclusão crítica: disputa de sentidos, não adaptação

Por isso, acho que vale a pena levar a sério o que Varoufakis expõe. Porque o que ele aponta é que o capitalismo, como conhecíamos, não morreu por via de uma revolução. Ele foi esvaziado por dentro, financiado por quem jurava salvá-lo. E agora, quem sustentava esse mesmo sistema, sempre na esperança de algum dia também ganhar, esta apenas tentando sobreviver numa lógica de funcionamento que exige tudo e oferece nada e, o mais alarmante é que algumas pessoas ou empresas (que lucram) com esse funcionamento, tenha coragem de chamá-lo de liberdade.


Essa suposta liberdade também alcança outro grupo que, ao se sentir livre para se expor, acaba contribuindo cotidianamente com um tipo de trabalho não reconhecido como tal. Essa perversidade, dessa forma, não se limita àqueles explorados por remuneração escassa. Há também um fenômeno silencioso, porém massivo: a multidão que alimenta as plataformas digitais com trabalho gratuito. Para além dos que tentam sobreviver vendendo, entregando, atendendo, há quem produza conteúdo diariamente, postando, comentando, expondo fragmentos de si, não por salário, mas pela promessa vaga de reconhecimento, influência ou permanência simbólica. Em muitos casos, nem isso. Apenas a pulsão de existir online. Esse gesto contínuo, aparentemente voluntário, sustenta uma lógica de extração ainda mais perversa: o valor não é gerado apenas pelo corpo produtivo, mas pela presença. A vida, transformada em dado, imagem e engajamento, torna-se insumo de um sistema que lucra com a exposição, o vício e a esperança. Nesse cenário, até o silêncio se converte em ausência penalizada.


Talvez seja hora de nomear o que está se passando, como parte de uma disputa de sentido e não de adaptação. A saúde mental não será restaurada com mindfulness ou produtividade flexível, mas com reconstrução de vínculos, redes reais de proteção e estruturas que sustentem o comum. Reconhecer que esse “novo feudalismo” não é liberdade pode ser o primeiro passo. A partir desse reconhecimento, torna-se inevitável ampliar a disputa para o campo das políticas públicas. Nomear o adoecimento não basta: é preciso tensionar os mecanismos que o produzem e sustentam. Algumas propostas já estão em curso, ainda que sob forte ataque das forças que lucram com o atual modelo. É o caso do PL 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News), que propõe a regulação das redes sociais e das plataformas de mensagens privadas, além de debates sobre a taxação das big techs e a responsabilização jurídica dos algoritmos que operam silenciosamente sobre a vida social.


Também estão em tramitação projetos que visam regulamentar o trabalho por aplicativos, como as propostas de revisão das condições de vínculo e remuneração mínima para motoristas e entregadores, em especial no contexto urbano brasileiro. Embora fragmentadas, essas iniciativas apontam caminhos para romper com a lógica da pseudoautonomia e produzir algum tipo de contrapoder institucional.


Não se trata de encontrar uma solução única, nem de fingir que haverá estabilidade plena em meio ao caos sistêmico. Mas reconhecer que a saúde mental, quando entendida como processo coletivo , também exige infraestruturas públicas, marcos legais e disputas institucionais. E isso, por mais técnico que soe, é parte da luta por viver.


A partir daí, talvez possamos reimaginar o que seria viver. Não como retorno a promessas antigas, mas como construção de outro tempo, aquele em que o comum seja protegido por vínculos, por redes e por políticas que recusem o domínio dos donos invisíveis.


Isso, talvez, não seja liberdade nos termos que nos ensinaram, mas o início de um embate. Um embate lento, desigual, ainda distante da conformação. Mas já em curso.



Referências bibliográficas

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