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Entre Flores e Feminicídios

  • Foto do escritor: Instituto Emancipar
    Instituto Emancipar
  • 7 de mar.
  • 10 min de leitura

O Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, tem uma história marcada por luta, resistência e reivindicação por direitos básicos. Suas origens remontam às manifestações de mulheres trabalhadoras no início do século XX, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, onde elas protestavam por melhores condições de trabalho, salários justos e o direito ao voto.

Um marco trágico nessa trajetória ocorreu em 25 de março de 1911, quando um incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York, resultou na morte de 146 pessoas, sendo 123 mulheres e 23 homens, a maioria imigrantes. Elas estavam trancadas no local de trabalho – uma prática cruel adotada para impedir pausas – e não conseguiram escapar do fogo. Esse episódio chocante revelou ao mundo as condições desumanas enfrentadas pelas trabalhadoras e se tornou um símbolo da luta feminina por direitos.

No entanto, ao longo dos anos, essa data foi sendo esvaziada de seu significado original e apropriada por uma lógica machista e capitalista, transformando-se em um evento de celebração superficial, marcado por distribuição de flores, mensagens genéricas e promoções de cosméticos. Essa banalização do 8 de março ignora o caráter político da data e as urgentes pautas que ainda precisam ser enfrentadas, como a disparidade salarial, a precarização do trabalho feminino e a epidemia de feminicídios que assola o Brasil e o mundo.

Atualmente a maneira como o Dia da Mulher é comemorado por muitas pessoas e empresas reflete uma despolitização perigosa. Flores e maquiagem são gestos simbólicos que, embora possam parecer carinhosos, não enfrentam as estruturas opressoras que perpetuam a violência contra as mulheres. Enquanto isso, a falta de políticas públicas eficazes, a cultura do machismo e a naturalização da violência de gênero continuam a ceifar vidas. A impressão que fica, especialmente para nós, mulheres, é a de que nossas vidas não importam. A violência que sofremos — seja ela física, psicológica ou sexual — é tratada como algo normal, como se fosse um preço a ser pago por existirmos em uma sociedade profundamente desigual.

Enquanto muitas mulheres recebem rosas e elogios vazios, outras são vítimas de violência extrema. O Brasil é um dos países com maior número de feminicídios no mundo. Segundo o "Dossiê dos Feminicídios no Brasil – 2024", produzido pelo Instituto Patrícia Galvão, em 2023, foram registrados 1.463 casos de feminicídio, uma média de quatro mulheres assassinadas por dia simplesmente por serem mulheres. Esses números não refletem apenas estatísticas, mas histórias reais de vidas brutalmente interrompidas. Casos como o de Vitória, a jovem de 17 anos de Cajamar–SP, encontrada morta em fevereiro deste ano, após ser torturada, ou da Ana Carolina, lésbica de 21 anos do Maranhão, assassinada por vizinhos com requintes de crueldade, são exemplos chocantes de como a violência contra as mulheres segue sendo uma realidade cotidiana. E precisamos destacar que muitos casos sequer chegam a ser computados ou noticiados, pois a vida das mulheres, especialmente das negras, pobres e periféricas, ainda é tratada como descartável.

É essencial destacar que a violência não atinge todas as mulheres da mesma forma. Como nos aponta Monique Wittig em seu ensaio "O Pensamento Heterossexual", "lésbicas não são mulheres", no sentido de que escapam à estrutura heteronormativa que define e oprime as mulheres. No entanto, essa fuga não as protege da violência; pelo contrário, as expõe a violências específicas, muitas vezes ainda mais brutais. Lésbicas sofrem com a lesbofobia, que se manifesta em crimes de ódio, estupros corretivos, torturas e até esquartejamentos. Esses crimes, além de bárbaros, são frequentemente invisibilizados pelos órgãos oficiais, que não categorizam adequadamente a motivação por trás deles. O "Dossiê dos Feminicídios no Brasil – 2024" revela que muitos casos de violência contra lésbicas não são computados como feminicídios, apesar de o serem claramente. O termo "lesbocídio", embora utilizado por ativistas e pesquisadores, ainda não tem reconhecimento na legislação brasileira. Estamos em luta para que essa categoria seja reconhecida juridicamente, assim como aconteceu com o feminicídio, mas, por enquanto, esses crimes continuam sem a devida visibilidade e punição.

Além disso, a violência contra mulheres não se limita aos atos físicos; ela deixa marcas profundas na saúde mental. Vivemos em constante estado de alerta, planejando cada detalhe de nossas rotinas para tentar nos proteger. Escolhemos roupas que não chamem "atenção demais", evitamos caminhos desertos, mudamos horários para não andar sozinhas à noite, carregamos chaves entre os dedos como armas improvisadas. Enquanto isso, os homens não precisam pensar duas vezes antes de sair de casa. Essa carga mental é exaustiva e invisível, mas real. E, ainda assim, quando algo acontece, somos nós as culpadas. Ouvimos frases como "com essa roupa, deve ter feito alguma coisa", "nesse horário, sozinha, nesse caminho...". A culpa, que nunca foi nossa, é jogada sobre nossos ombros, enquanto os verdadeiros responsáveis seguem impunes. 

A violência também deixa sequelas psicológicas profundas. Mulheres que sobrevivem a abusos muitas vezes enfrentam depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e, em casos extremos, pensamentos suicidas. Segundo dados do Ministério da Saúde, disponíveis na plataforma DATASUS, mulheres que sofrem violência doméstica têm 70% mais chances de desenvolver depressão e 80% mais chances de tentar suicídio. Esses números são ainda mais alarmantes quando consideramos a subnotificação dos casos de estupro e violência sexual. Muitas sobreviventes não denunciam por medo, vergonha ou descrença no sistema. E, mesmo quando denunciam, muitas vezes são revitimizadas pelo próprio sistema que deveria protegê-las. Estima-se que apenas 10% dos casos de estupro sejam notificados no Brasil, segundo o "Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2023", coordenado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


A subnotificação de crimes sexuais e feminicídios no Brasil é um problema alarmante, que mantém milhares de vítimas invisíveis e dificulta a criação de políticas eficazes de enfrentamento à violência de gênero. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), estima-se que apenas 10% dos casos de estupro sejam notificados no país. Isso significa que a imensa maioria das vítimas sofre em silêncio, sem qualquer registro oficial que permita ao Estado intervir.


Além disso, muitos feminicídios são registrados apenas como homicídios comuns, apagando a dimensão de gênero do crime. Esse erro estatístico não é apenas técnico, mas simbólico: ele inviabiliza um combate mais assertivo à violência contra as mulheres, encobrindo a realidade de um país onde ser mulher pode significar viver sob ameaça constante.


Outro dado que revela a gravidade dessa negligência é o número de desaparecimentos femininos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), mais de 60 mil pessoas desapareceram no Brasil em 2023. Apesar de não sabermos qual percentual exatamente se refere às mulheres, sabemos que são muitas, as quais tiveram seus casos tratados sem a seriedade necessária, como se simplesmente tivessem saído de casa por vontade própria. No entanto, pesquisas apontam que esses desaparecimentos estão frequentemente ligados à violência doméstica, ao tráfico humano e à exploração sexual—formas brutais de violência de gênero que ainda recebem pouca atenção do poder público.


O cenário torna-se ainda mais assustador quando olhamos para dentro de casa, o espaço que deveria ser um refúgio seguro. A violência intrafamiliar é um dos pilares dessa epidemia que vivemos. O mesmo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) aponta que 88% dos casos de violência contra mulheres ocorrem dentro de casa, cometidos por parceiros, ex-parceiros, pais, irmãos ou outros familiares. A violência sexual contra meninas e adolescentes também segue essa lógica perversa: na maioria das vezes, o agressor é alguém próximo, como um pai, padrasto ou vizinho.


Esses números não são apenas estatísticas frias; por trás deles, há histórias de medo, de dor e de vidas interrompidas. Quando dizemos que "o perigo mora dentro de casa", não estamos usando uma metáfora—para muitas mulheres brasileiras, essa é uma verdade literal e cotidiana. Enquanto a subnotificação persistir e o Estado seguir negligenciando essas vítimas, continuaremos convivendo com uma violência que não apenas mata, mas silencia e apaga a existência de milhares de mulheres.


É fundamental compreender que o combate à epidemia de feminicídios e à violência contra as mulheres não pode recair apenas sobre elas. A responsabilidade é coletiva, e os homens, como mostram os dados, precisam assumir seu papel nessa luta.

Pesquisas indicam que 95% dos casos de violência contra mulheres são cometidos por homens, geralmente alguém próximo: ex-companheiros, pais, irmãos, avôs, vizinhos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023), os feminicídios no Brasil têm um padrão claro: o assassino quase sempre tem ou teve um vínculo afetivo com a vítima, e os motivos que levam ao crime são frequentemente relacionados ao controle e à posse sobre o corpo e a vida das mulheres.


Apesar de nem todos os homens cometerem violência, é um fato que praticamente todos os casos têm um homem como agressor. Esse dado não é uma generalização, mas um alerta sobre como a cultura machista está enraizada e naturaliza comportamentos opressores, reproduzindo padrões que colocam as mulheres em situação de risco.


Antes que alguém tente desviar o foco com o argumento de que "mulheres também cometem violência", é necessário reforçar o que as estatísticas deixam evidente: a imensa maioria dos agressores são homens. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), os casos de feminicídio cresceram 2,6% no último ano,  mulheres sendo assassinadas apenas pelo fato de serem mulheres. Além disso, uma mulher é estuprada a cada 8 minutos no Brasil, e em 85% dos casos o agressor é conhecido da vítima.


A violência contra as mulheres não é um problema individual, mas estrutural. Ela se manifesta desde a infância, quando meninas são ensinadas a "se proteger", enquanto meninos muitas vezes crescem sem questionar os comportamentos violentos que aprendem e reproduzem. Mudar esse cenário exige que os homens se responsabilizem pela desconstrução desse modelo, combatendo ativamente atitudes machistas, ouvindo as mulheres e enfrentando o problema dentro dos próprios círculos sociais.


O enfrentamento da violência contra mulheres não pode ser apenas uma pauta das mulheres—precisa ser um compromisso da sociedade na totalidade. E, acima de tudo, como já foi apresentado,  precisa ser uma responsabilidade dos homens, os quais são os principais agentes dessa violência. Afinal, enquanto a masculinidade seguir sendo sinônimo de poder e dominação, mulheres continuarão pagando com a própria vida.


Outro tópico que merece destaque é  observar que em meio a crises políticas e sociais, os direitos das mulheres são frequentemente usados como moeda de troca. A filósofa Simone de Beauvoir já alertava, em O Segundo Sexo (1949): "Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida." Enquanto pautas morais e ideológicas dominam os debates públicos, questões urgentes para a vida das mulheres — como o acesso à saúde, o combate à violência doméstica e a garantia dos direitos reprodutivos — são frequentemente relegadas a segundo plano. Parece que, para alguns, nossos corpos e nossas vidas não são prioridades, mas apenas instrumentos de disputa ideológica.


Um exemplo disso é o direito ao aborto, que, mesmo já extremamente restrito no Brasil, segue sob ameaça constante de retrocesso. Em 2023, o Congresso Nacional discutiu projetos que tentam dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal, mesmo nos três casos permitidos por lei: estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia fetal. Os dados evidenciam essa realidade. Segundo o Ministério da Saúde (2022), foram realizados apenas 1.602 abortos legais no Brasil, um número que representa apenas uma fração dos casos reais, pois muitas mulheres recorrem a métodos clandestinos e inseguros, colocando suas vidas em risco. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2022) alerta que 60% das mortes maternas no Brasil poderiam ser evitadas com melhor acesso a serviços de saúde reprodutiva. A criminalização do aborto não impede sua prática; apenas força mulheres — especialmente as mais pobres e negras — à clandestinidade, à vulnerabilidade e, muitas vezes, à morte.


A escritora e ativista Audre Lorde, em The Transformation of Silence into Language and Action (1977), nos lembra: "Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo que as correntes dela sejam muito diferentes das minhas." O silêncio nunca protegeu ninguém. Pelo contrário, perpetua a violência e a injustiça. Tudo o que conquistamos até agora — o direito ao voto, ao trabalho, à educação, à autonomia sobre nossos corpos — não foi concedido de bom grado; foi arrancado por meio de luta, suor e sangue. O Dia Internacional da Mulher, que surgiu a partir das mobilizações feministas e das greves operárias do início do século XX, precisa ser resgatado como um dia de luta e conscientização, e não reduzido a homenagens vazias ou campanhas comerciais. 


Precisamos politizar essa data e exigir ações concretas do Estado e da sociedade. É essencial falar sobre a cultura do estupro, que normaliza e justifica a violência contra as mulheres, sobre a falta de investimento em políticas públicas de proteção, como abrigos para vítimas de violência doméstica e atendimento psicológico especializado, e sobre a impunidade, que permite que muitos agressores continuem livres enquanto suas vítimas são silenciadas. Por trás de cada número de feminicídio, há uma mulher real, com uma história interrompida, uma vida roubada, um sonho destruído. 


Enquanto mulheres, não queremos flores, discursos vazios ou homenagens superficiais. Queremos o direito de caminhar pelas ruas sem medo, de amar sem sermos assassinadas, de existir sem sermos violentadas. Queremos respirar sem sermos silenciadas, sonhar sem sermos interrompidas, ser livres sem sermos ameaçadas. O Dia da Mulher deve ser um dia de resistência, denúncia e luta. Não podemos esquecer das mulheres que morreram queimadas na fábrica Triangle Shirtwaist, em 1911, das que foram assassinadas por seus parceiros, das que desapareceram sem deixar rastro, das que foram silenciadas pela violência e da injustiça.

Precisamos honrar suas memórias transformando nossa dor em força, nossa indignação em ação, e nossa luta em conquistas reais. A responsabilidade de mudar essa realidade não é apenas das mulheres; é de toda a sociedade, especialmente dos homens, que precisam se engajar ativamente no combate à violência contra mulheres. Enquanto houver uma mulher vivendo com medo, enquanto houver uma menina sendo violentada, enquanto houver uma lésbica sendo torturada, nossa luta não terá fim. Porque, como disse Audre Lorde, "o silêncio não nos protege". E nós não nos calaremos. Somos nós por nós. Tudo o que foi conquistado até o momento, não foi dado, foi arrancado. E seguiremos em frente, até que todas sejamos livres.


Referencias:

BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS – Banco de Dados do Sistema Único de Saúde. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/. Acesso em: 07 mar. 2025.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2023. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/. Acesso em: 07 mar. 2025.

INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Dossiê dos Feminicídios no Brasil – 2024. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2024. Disponível em: https://www.institutopatriciagalvao.org.br/. Acesso em: 07 mar. 2025.

LORDE, Audre. The transformation of silence into language and action. In: ______. Sister outsider: essays and speeches. Berkeley: Crossing Press, 1984.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Abortion care guideline. Genebra: WHO, 2022. Disponível em: https://www.who.int/. Acesso em: 07 mar. 2025.

WITTIG, Monique. O pensamento heterossexual e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.



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