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Entre o medo do sim e o silêncio: o que eu faço com um like?

  • Foto do escritor: Instituto Emancipar
    Instituto Emancipar
  • 12 de jun.
  • 11 min de leitura

Atualizado: 30 de jul.

“Você disse que não sabe se não, mas também não tem certeza que sim…” SE, Djavan


Composta em 1992, “Se”, canção de Djavan poderia ter sido inspirada nas redes sociais. Porque o “se” virou regra, e o “sim” parece arriscado demais. Amar, desejar, demonstrar interesse, tudo isso passou a ser mediado por gestos mínimos, quase imperceptíveis. Likes, emojis, memes, reels: sinais que não se dizem inteiros, que mantêm as pessoas num estado de espera. E se já era difícil nomear o desejo nos tempos dos bilhetes dobrados e das músicas na rádio, o que dizer agora, quando até o silêncio pode ser interpretado como presença?

Neste texto, convido você a passear por diferentes tempos do afeto, lembrar dos flertes analógicos e pensar sobre o que, de fato, fazemos com esse like que chega sem legenda, mas que insiste em ocupar espaço.


Likes e presentes: o afeto digitalizado

Dia das namoradas, dos namorados que sabem que são, dia de quem ama em segredo, em voz alta, a dois, a três, sozinha, em rede, com rótulo, dos que estão “apenas se relacionando”, sem necessariamente assumirem um nome. Dia dos encontros possíveis, dos impossíveis, dos que ficaram no quase, dos que ainda não foram, dos afetos que não ganham presentes, mas que se encontram no corpo, nos pensamentos e, por que não, nas notificações. Uma data comercial, celebrada em junho somente no Brasil, criada para aquecer o mercado entre o Dia das Mães e o Dia dos Pais, mas que, para muita gente, em tempos de redes sociais, também se torna um tempo de angústia, de incertezas e de silêncios codificados.


E aí, podemos nos fazer uma pergunta: dá para considerar um like, um emoji, um meme ou um reels como presente? E se for um presente, o que fazer com essa (suposta) interação, que chega tantas vezes pela metade, que não diz nada diretamente, que não nomeia ou assume qualquer sentimento, que se esconde atrás da tela e apenas mantém alguém ali, esperando por algo que talvez nunca seja dito de outra maneira? Afinal, o que eu faço com um like?


Quando o calendário pesa

Antes mesmo de tentar responder essa pergunta, talvez seja necessário voltar um pouco e repensar as transformações que marcaram a forma de se relacionar ao longo dos anos. Não se trata aqui de oferecer uma análise exata, nem de pretender profundidade. A proposta aqui é quase superficial mesmo, como são muitas das interações que temos hoje, e talvez por isso ela precise convocar uma reflexão. Porque, nesse jogo, quando a demonstração de afeto exige o mínimo esforço ou há entrega demais por gestos tão pequenos, tudo parece carregado de expectativas desiguais. Um like vira sinal, um emoji vira código e o envio de um reel vira tentativa de aproximação. Será que tudo isso pode ser considerado uma forma legítima de demonstrar interesse?


E tem ainda algo que pesa mais quando o calendário insiste. Em datas como o Dia das (os) Namoradas (os), essas interações ganham outra espessura. O que poderia ser só uma reação qualquer, vira espera e uma espécie de ausência amplificada. Para quem já vive o peso do quase ou da solidão, esses dias não trazem só flores e corações, mas também a vitrine do que falta, do que nunca veio ou do que já foi embora. O feed se enche de casais idealizados, cafés da manhã com legenda combinada, declarações públicas que nem sempre combinam com o que se vive no privado. E você ali, tentando entender se aquele meme que chegou era só uma piada ou uma tentativa de se aproximar. Tentando não sentir demais por quem não fala com você, mas marca presença o tempo todo, só o bastante para confundir, nunca para se comprometer.



De 1977 até aqui: a transformação tecnológica do afeto

Bem, para contextualizar de onde eu parto, acho importante dizer que nasci em 1977. Isso significa que, além de já ter muitos cabelos brancos, que denunciam a minha idade, também presenciei, diante dos meus olhos, transformações tecnológicas tão rápidas quanto intensas. Entre essas mudanças, talvez uma das mais significativas tenha sido a forma de se relacionar, que também se modificou não aos poucos, mas drasticamente, a partir da mediação de novas tecnologias.


Aqui, vale lembrar que, tecnologia não é sinônimo de internet, e esse é um ponto importante. Bilhetes passados em sala de aula, cartas escritas à mão, anúncios em jornais ou revistas, dedicatórias em fitas cassete, músicas pedidas no rádio e até mesmo as telemensagens gravadas, são formas tecnológicas de comunicação. Mas há algo que distingue o que vivíamos antes do que vivemos hoje: a velocidade, a sobreposição de mensagens, as conexões múltiplas e uma aparente disponibilidade constante. Ao mesmo tempo em que permitiu que mais pessoas tivessem voz, também diluiu o tempo da espera, da escuta e da resposta. O afeto, antes cultivado no intervalo entre a ação e o retorno, passou a se dar em cliques quase imperceptíveis. E é nesse intervalo entre estar em contato e estar em relação, que muita coisa se perdeu ou, pelo menos, se transformou. Porque se relacionar, antigamente, exigia mais do que um clique, exigia um gesto, um tempo e um tipo de coragem que não podia ser substituída por um emoji.


Bilhetes, cadernos e códigos secretos

Quando eu era criança, gostar de alguém era algo que levávamos muito a sério, ao mesmo tempo que também gerava muita vergonha. Esse sentimento alimentava o passar das tardes e do tempo, de maneira leve. Era um tempo de gostar, tempo de falar, tempo de planejar e ganhar coragem para agir, tempo de sofrer, de se envergonhar ao ser descoberta, de se desapaixonar e se apaixonar novamente. Tudo isso ao som da época, que podia ser um bolero, uma MPB ou, quem sabe, um rock.


Nesse tempo da escola, havia o caderno de perguntas passado entre colegas, as mensagens anônimas escritas no quadro negro durante o recreio, os bilhetes dobrados em triângulo e passados de mão em mão até chegar no alvo. Usávamos códigos desenhados na última folha do caderno, apelidos secretos ou desenhos feitos com caneta colorida. E, se você gostasse de alguém da sua sala, era possível que precisasse de um intermediário: uma amiga de confiança, uma irmã mais velha, ou até mais nova. Um bilhete escrito com letra falsa, com letra tremida, com palavras escritas errado, que denunciava quem ainda não dominava plenamente a escrita. Às vezes, o bilhete vinha com uma resposta. Por vezes, vinha com um silêncio.


Eu, por exemplo, fui a irmã mais nova que recebia os bilhetes para o meu irmão do meio. Achava fofo, ainda que não compreendesse de fato o que aquilo significava.

Talvez entregar bilhetes na infância, tenha sido o ensaio para os gestos mais elaborados da vida adulta, como as músicas dedicadas no rádio ou os anúncios escritos em jornais e revistas, Formas de dizer o que se sentia quando já se sabia escrever, mas ainda era difícil falar.


As declarações nas rádios, jornais e telefones

Enquanto os bilhetes corriam pelas mãos das crianças e adolescentes, o flerte entre os adultos da mesma época, seguia por outros caminhos, mais públicos, mais formais, mas igualmente direcionados pelo desejo de fazer com que o outro soubesse da existência dele.

Alguns mandavam músicas na rádio, daquelas com dedicatória e voz de locutor, quase sempre acompanhadas do bordão: “pra alguém especial que vai saber que é pra ele”. Outros escreviam anúncios em jornal, procurando relacionamento sério, “mulher sincera”, “homem trabalhador”.


Havia também quem respondesse aos classificados de revistas, enviando cartas com o endereço no verso, esperando por semanas até receber alguma resposta. Quem das antigas não se lembra do famoso programa de TV “Quer namorar comigo?” Não podemos esquecer das telemensagens, que marcaram uma época quando o telefone começa a se popularizar. Você ligava, pagava por um recado com voz doce e uma música romântica, e deixava que aquela gravação dissesse o que você não conseguia dizer com a própria voz. Às vezes, quem recebia não fazia ideia de quem tinha mandado, mas ao menos sabia, com toda a certeza, o que o outro queria dizer e que era para ela.


Gostar de alguém envolvia presença e ação, era preciso se movimentar em direção ao outro, mesmo que o gesto fosse mínimo, como um olhar que se sustentava por alguns segundos, um pedido de dança no baile da escola, fazer companhia no recreio ou se esforçar para jogar queimada no mesmo time. Havia muita timidez e medo, mas havia também disposição em se deixar ver, em se mostrar querendo. E talvez fosse justamente isso que tornava tudo mais transparente, porque, para gostar, era preciso fazer alguma coisa, era preciso se colocar, quase sempre envolvendo algum risco.


A gramática da presença digital

Após essas formas públicas e corporativas de flerte, a revolução digital ampliou e fragmentou, ainda mais, os modos de se expressar. Hoje, não precisamos de rádio ou tempo no ar: basta um clique discreto. O que talvez cause tanto estranhamento e, ao mesmo tempo, tanta confusão é que mandar um emoji, reagir com um coração, compartilhar um meme ou curtir uma foto também pode ser, para muitas pessoas, uma forma legítima de gesto. E talvez seja mesmo. Para uma geração alfabetizada digitalmente e atravessada pela ansiedade, pela velocidade e pela exposição constante, um clique pode carregar a mesma carga emocional que, para outras gerações, exigia o bilhete, a carta, a música ou o presente.


O paradoxo está justamente aí: o gesto existe e pode ser legítimo, mas será que cumpre o mesmo papel para quem o recebe? Para alguns, um clique pode ser tudo o que conseguem oferecer; para outros, ele pode soar como pouco, quase nada. Nem sempre a ausência de palavra é ausência de sentimento, mas quando a única linguagem possível é a do emoji, talvez seja necessário repensar o quanto estamos nos permitindo, de fato, estar em relação.

Porque, apesar de haver movimento, há também dissolução: gestos mínimos, fragmentados, quase imperceptíveis, que se perdem no excesso de dados, no fluxo contínuo de notificações, na ausência de palavras e na impossibilidade de saber o que vem depois. Se antes havia um tempo de agir e depois esperar, hoje é possível enviar múltiplos sinais, simultâneos e sobrepostos e, isso também silencia. No lugar da ausência, temos uma presença constante; no lugar da resposta, temos a recorrência. O risco, que antes fazia parte da aproximação, agora é substituído por uma zona de conforto ambígua, onde o outro está, mas não se compromete; reage, mas sem dizer o que sente.


Nem todo mundo ama do mesmo lugar

Creio que também é importante pensar que esses modos de se relacionar nunca foram os mesmos em todo lugar. Não é possível falar de relacionamentos mediados por redes sociais como se todos tivessem acesso, repertório ou mesmo segurança para se expressar da mesma forma. A maneira como se ama, se insinua ou se silencia ainda depende, e muito, do território em que se vive, da classe social, da cor da pele, da orientação sexual, da escolaridade, da rede de apoio e da cultura local.


Nos centros urbanos com acesso à internet rápida, determinadas práticas se popularizaram com mais força, mas não é só a conexão que muda: muda também a linguagem, o risco e até a legitimidade dos afetos. O amor digitalizado carrega marcas de classe, raça e território. Se nos centros é possível performar um desejo nas entrelinhas de um story, nas bordas da sociedade ele pode nem chegar a existir publicamente. Enquanto em outras regiões, principalmente nas zonas rurais ou em áreas periféricas sem cobertura constante, os códigos e os tempos são outros, e os gestos seguem outros ritmos. Não se trata de hierarquizar formas de se relacionar, mas de reconhecer que os afetos também carregam desigualdades e o risco de se expor não é igual para todo mundo.


Por exemplo, amores entre pessoas do mesmo sexo, esses, quase sempre clandestinos, precisavam criar códigos, reinventar gestos e espaços. Para LGBTs, por exemplo, a mediação tecnológica abriu possibilidades de encontrar outros iguais, de reconhecer experiências semelhantes, de construir comunidades que antes pareciam impossíveis. Mas, com essa abertura, vieram também novos desafios. Porque se antes o medo era o da repressão direta, hoje ele se soma à exposição massiva, ao julgamento público, à violência que também circula nas telas. As redes oferecem espaços, sim, mas não sem risco. Afinal, é diferente assumir um flerte público sendo uma mulher branca e do centro da cidade, do que sendo uma mulher lésbica, negra, periférica. A linguagem das redes não apaga as desigualdades; apenas as reconfigura. E nesse cenário, surgem outras gramáticas para o afeto, outras maneiras de se fazer presente, de se insinuar ou se proteger.


A nova gramática do desejo

Essas novas gramáticas, muitas vezes, se apoiam em códigos aparentemente simples, mas carregados de sentidos compartilhados. E é aí que entram os aplicativos e redes que marcaram a nossa entrada nesse novo território do desejo digital.


Quando chegaram o ICQ e o MSN, iniciou-se um novo modo de espera. Era preciso estar online, torcer para ser notado, mandar uma piscadinha, puxar assunto. Não havia notificação nem algoritmo. O desejo precisava de tempo humano. Depois vieram o Orkut, o Facebook, o Instagram, o TikTok. E junto deles, uma nova gramática do afeto. As curtidas viraram acenos. Os comentários, insinuações. Os stories, vitrines de si. E, de repente, estar presente passou a significar reagir. Flertar virou, seguir, curtir, enviar um emoji Mas o que isso quer dizer, de verdade, quando a presença se reduz a um rastro digital e a subjetividade é moldada por um algoritmo?


Vi um meme outro dia…

Um menino numa sala de aula manda, num grupo de WhatsApp, a foto de uma menina que está na mesma sala. Ele pergunta se alguém tem o @ dela, porque achou bonita e queria falar com ela. Alguém responde: “ela está do seu lado”.


Ri, como quem se reconhece. Porque é isso. As redes sociais atravessaram de tal forma o cotidiano que o gesto de gostar, que antes exigia aproximação, hoje é delegado à tela. É mais fácil perguntar num grupo do que dizer “oi” ao lado. E isso não acontece só com adolescentes. Muitas de nós também já ficamos ali, com alguém curtindo tudo o que postamos, mandando memes que soam como indiretas, assistindo todos os nossos stories, mas sem nunca dizer nada.



Quando o quase pesa

Ficar em suspensão virou um estado comum, quando a gente se vê, se deseja, mas não se move. Ou melhor, se move só até certo ponto, afinal a pessoa curte, comenta, manda emojis, mas nunca chama. Nunca diz o que sente, nunca abre espaço para o que poderia ser, e às vezes, esse quase vira tortura.


Pesquisas indicam que esse tipo de ambiguidade relacional tem afetado especialmente jovens mulheres, pois a socialização feminina ainda nos ensina a ler sinais, sustentar esperança e tentar “entender” o outro, mesmo quando ele não se comunica de forma clara. A psicóloga Valeska Zanello, por exemplo, analisa os impactos da cultura da performance sobre a saúde mental das mulheres e mostra como somos ensinadas a estar sempre disponíveis emocionalmente, como se o nosso afeto estivesse a serviço de decifrar silêncios, como se fôssemos as únicas responsáveis por traduzir um desejo que o outro sequer se compromete a nomear. Mas calma, esse não é um artigo científico, se você quiser se aprofundar, deixarei as referências no fim…


Amor exige presença

Talvez por isso tudo os likes incomodem tanto. Porque são pistas, mas não são palavras. São presenças, mas não vínculos. E, num mundo saturado de estímulos, a ausência de gesto pode dizer mais do que mil curtidas.


Amar, mesmo na era das redes, ainda exige coragem, exige palavra, intenção, gesto e movimento. O que não significa se expor de forma irrefletida, mas se comprometer com o que se deseja. Curtir talvez seja fácil. Dizer “eu gosto de você” ainda é raro.


E quando o desejo é dissidente, tudo isso se intensifica, ainda hoje carregam o medo do rótulo, da rejeição, da exposição que não é apenas afetiva, mas identitária. Uma mulher curtir a publicação de outra mulher, por exemplo,  pode ser um flerte ou um risco. Dizer “eu gosto de você” carrega não só a tensão do desejo, mas o peso histórico da clandestinidade e da violência. Por isso, tantas vezes, o like vira a única forma possível de presença. Mas, mesmo quando protegida, essa presença não deixa de ser ambígua. E, ainda assim, o que se faz com ela?


Talvez a gente precise, neste Dia das (os) Namoradas (os), mais do que flores ou promoções de aplicativo. Talvez seja hora de recuperar o valor do que se diz com o corpo, com o tempo, com a escolha de estar. Porque, se tudo vira apenas uma reação, o que permanece? E entre um story e outro, o que poderia ter sido encontro vira apenas mais um gesto suspenso, acumulado entre notificações e mal-entendidos. No final do dia, quando o feed silencia e a tela se apaga, talvez reste apenas a pergunta: o que eu faço com um like?



Por Stela Cláudia Barboza da Silva

Psicóloga (CRP 06/116869), atuante na abordagem sócio-histórica

Responsável Técnica no Instituto Emancipar – Saúde e Bem-Estar



Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.


OBSERVATÓRIO DA JUVENTUDE DA USP; NÚCLEO JUVENTUDES DA UFMG. Juventudes e Ambiguidades Afetivas nas Redes Sociais. Belo Horizonte – São Paulo: UFMG/USP, 2022. Disponível em: https://www.ufmg.br/proex/2022/06/29/juventudes-e-redes-pesquisa-aponta-impactos-do-uso-das-redes-sociais-nas-relacoes-afetivas/. Acesso em: 9 jul. 2025.


RIBEIRO, Natália. Como evitar a tristeza que se aproxima com o Dia dos Namorados. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/06/como-evitar-a-tristeza-que-se-aproxima-com-o-dia-dos-namorados.shtml. Acesso em: 9 jul. 2025.


ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura da performance. Rio de Janeiro: Appris, 2021.


 
 
 

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