Pequena Coreografia do Adeus e as marcas da infância: reflexões sobre vínculos, dor e escrita
- Instituto Emancipar

- há 2 dias
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“Voltar para casa nem sempre é possível. E às vezes, nem desejável, mas necessário”.
Li Pequena Coreografia do Adeus, de Aline Bei, há pouco mais de um ano, num momento em que eu mesma reorganizava minha vida a partir da vontade de realizar planos, o que não deixou de ser uma mudança densa e concreta. Tinha acabado de chegar a outro país para estudar e estava disposta a viver a experiência em sua totalidade. Deixei minha família, minhas amigas, minha casa e minha língua. O preço dessa decisão veio rápido e, entre o desejo de atravessar fronteiras e a dor escancarada da saudade, revivi intensamente sensações passadas. As lembranças da infância retornaram com força, talvez justamente porque eu estivesse em um lugar que me expunha a uma certa fragilidade estrutural e simbólica. Era como se, longe dos circuitos familiares, o corpo se permitisse escutar memórias antes abafadas pela rotina, expondo suas vulnerabilidades.
Apesar de ser um livro que estava na minha lista, eu não imaginava que seria justamente nesse tempo de recomeço que aconteceria finalmente o encontro. Ou talvez eu tenha me permitido encontrá-lo, como acontece com algumas obras que não escolhem o momento exato, mas se insinuam quando já não é mais possível ignorá-las. Escutei o audiolivro no YouTube enquanto lia o PDF em paralelo, numa tentativa de manter minha atenção entre os estímulos. Mas percebo agora que aquela escolha ultrapassava os aspectos técnicos e se colocava também como um tipo de acolhimento. Havia algo na escrita de Bei que exigia escuta, mas não qualquer escuta: eu precisaria ler com o corpo. A obra me atravessou intensamente, escutei com lentidão, mas com constância, e dei permissão para ela me tocar.
Tudo bem, às vezes eu sou um pouco emocionada, mas a prosa poética de Aline Bei, para mim, como leitora, é qualquer coisa; uma linguagem autoral visceral, que atravessa a leitura e sustenta a experiência. Compreendi que sua escrita é feita de fragmentos de histórias que se escancaram no caos ao passo que se mostram exatamente como são. Cada quebra de linha, cada pausa abrupta, cada repetição carrega uma marca de interrupção afetiva e motivada.
O que mais me tocou foi reconhecer em sua escrita uma espécie de espelho, e não digo no sentido da vaidade. Pensei em como devem ser comuns pessoas se reconhecerem naquelas linhas. Para além dos temas que ela convoca, é possível se identificar também com o modo como eles emergem a cada página. Há ali a contradição da exposição do não dito, que me parece profundamente afinada com os fazeres da clínica e da escrita crítica. Aliás, me reconheci muito em sua escrita, quando ela sustenta a complexidade dos vínculos partidos, das palavras falhadas e dos afetos em suspensão. Essas sustentações, muitas vezes, são difíceis, mas, ao final, é assim que muitas de nós tentamos articular as escutas e escritas que resistem à simplificação.
Uma narrativa sobre vínculos interrompidos
Júlia, a protagonista, atravessa uma infância mediada por um pai agressivo e uma mãe emocionalmente ausente. Ainda assim, a narrativa não é estritamente sobre maus-tratos de forma explícita. A força da obra está em mostrar como a dor também se organiza nos silêncios, na suspensão das ações e linguagens e nos afetos que nunca se concluem. A infância de Júlia se torna, portanto, campo formativo das feridas que seguirão abertas. Ela cresce num território onde as palavras não conectam pessoas e as atitudes não chegam a tempo. Toda tentativa de vínculo parece marcada por uma coreografia que se repete, mesmo quando já não há ninguém dançando ao redor.
Essa repetição, no entanto, não pertence apenas à história de Júlia. É também expressão de uma estrutura social que ensina e repete modos de afeto atravessados por silêncios, violências e heranças de gênero. Há, na experiência dela, algo que espelha tantas infâncias marcadas por vínculos frágeis e pela dificuldade coletiva de sustentar o cuidado como prática e não como obrigação. Pensar sobre isso é também interrogar como essas coreografias familiares seguem se transmitindo, ainda que em formas mais sutis, nas relações contemporâneas.
O livro não oferece promessas de cura, nem me parece que se proponha a um arco narrativo de superação. O que ele oferece, com uma crueza delicada, é a possibilidade de reconhecer que olhar para os padrões que se repetem em muitas famílias pode ser doloroso, mas também inevitável. Nenhuma de nós escapa totalmente das marcas herdadas; todas carregamos nossos traumas, nossas fissuras, nossos pactos de silêncio e, ainda assim, há momentos em que se permite olhar para essas marcas. Nesse processo de olhar, mesmo que brevemente, há também uma forma de cuidado, aquele que testemunha e, quiçá, também acolhe e transforma.
Heranças que se escrevem no corpo
Aline Bei nos faz lembrar que sair da casa dos pais não significa apagar as lembranças nem o que elas nos causam. As heranças que nos constituem se manifestam diariamente, nas reações automatizadas, nos movimentos que herdamos sem saber nomear e no ressentimento que é sentido, mas negado ou nem mesmo percebido. Júlia não tenta apagar o passado, tampouco deseja repeti-lo. Ela apenas tenta seguir e, nesse movimento de continuidade, escreve. A escrita aparece como um fio possível entre o que não se aguenta mais e o que ainda não se sabe construir. Nesse intervalo, ela se encontra e, assim, sua força se revela.
Esse espaço entre o que foi herdado e o que pode ser recriado é também o lugar onde, muitas vezes, atuamos enquanto psicólogas, escritoras e mulheres em deslocamento. A linguagem, nesse lugar, opera como mediação entre memória e criação, entre o vivido e o que ainda está por se significar. Vigotski nos lembra que é na relação com o outro e com a cultura que o sujeito transforma a experiência em sentido. Por isso, reconhecer na escrita de Bei essa força de mudança, que recusa a estetização da dor sem apagar sua intensidade, foi um reencontro com a potência criadora do próprio sofrimento, quando este encontra forma de ser externalizado.
Um livro que reverbera
Revisitar Pequena Coreografia do Adeus agora, escrevendo esta resenha, é reconhecer que a obra continua em mim, mesmo passado o tempo. Este é, definitivamente, um daqueles livros que não se encerram em suas páginas. Ele reverbera em quem lê, porque busca mover. Não constrói empatia fácil, mas exige presença. A dor não é entregue ao consumo, mas à escuta das feridas que ainda pedem sentido, esperam passagem para sair e acolhimento para serem nomeadas.
Essa resenha não tem intenção de concluir nada, talvez porque o próprio livro se recuse a encerrar. Creio que o que ele oferece são rastros que, uma vez percebidos, não podem mais desaparecer. Eles seguem conosco, exigindo novos passos, outras danças e despedidas menos automáticas. Se há uma coreografia possível, talvez ela se componha aos poucos, sem roteiro e sem garantias, apenas no movimento contínuo de tentar seguir. Talvez seja isso: uma dança que não promete chegar, mas nos mantém em movimento.
Título: Pequena Coreografia do Adeus
Autora: Aline Bei
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2021
Gênero: Romance (prosa poética)
Formato: Livro físico e audiolivro (disponível no YouTube)




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